Desnaturalizar a miséria e desburocratizar a fome, pede o Papa
Da Redação
Francisco disse que a miséria tem um rosto e que a burocracia não pode impedir a distribuição de alimentos para quem precisa
O Papa Francisco fez uma visita de quase duas horas à sede do Programa Mundial Alimentar (PMA). O Pontífice foi recebido pela Diretora Executiva Ertharin Cousin, com quem manteve uma conversa privada.
No discurso que dirigiu aos presentes na Sessão Anual do Conselho Executivo do Programa Mundial Alimentar, agradeceu o convite para inaugurar a Sessão e saudou os presentes agradecendo os esforços e compromissos com a luta contra a fome.
Francisco recordou a oração que fez diante do «Muro da Memória», testemunha do sacrifício feito pelos membros deste Organismo, dando a sua vida para que não faltasse o pão aos famintos.
“Memória que devemos manter para continuar a lutar, com o mesmo vigor, pela meta tão ansiada da «fome zero». Aqueles nomes gravados à entrada desta Casa são um sinal eloquente de que o PAM, longe de ser uma estrutura anónima e formal, constitui um válido instrumento da comunidade internacional para empreender atividades sempre mais vigorosas e eficazes. A credibilidade duma instituição não se baseia nas suas declarações, mas nas ações realizadas pelos seus membros. Baseia-se nos seus testemunhos.”
O Papa explicou que no mundo interconectado graças às tecnologias da comunicação, nos aproximamo de muitas situações dolorosas mas, ao mesmo tempo, pouco a pouco nos tornamo imunes às tragédias dos outros, considerando-as como qualquer coisa de natural, o que gera a “naturalização” da miséria.
“Esta tendência – ou tentação – exige de nós um passo mais e, por sua vez, revela o papel fundamental que instituições como a vossa têm no cenário global. Hoje não podemos dar-nos por satisfeitos apenas com o facto de conhecer a situação de muitos dos nossos irmãos. As estatísticas não nos saciam. Não é suficiente elaborar longas reflexões ou submergir-nos em discussões infindáveis sobre as mesmas, repetindo continuamente argumentos já conhecidos por todos.”
Francisco disse que é necessário “desnaturalizar” a miséria, deixando de considerá-la como um dado entre muitos outros da realidade, porque a miséria tem um rosto.
“Tem o rosto duma criança, tem o rosto duma família, tem o rosto de jovens e idosos. Tem o rosto da falta de oportunidades e de emprego de muitas pessoas, tem o rosto das migrações forçadas, das casas abandonadas ou destruídas. Não podemos «naturalizar» a fome de tantas pessoas; não nos é lícito afirmar que a sua situação é fruto dum destino cego contra o qual nada podemos fazer. Quando a miséria deixa de ter um rosto, podemos cair na tentação de começar a falar e discutir sobre «a fome», «a alimentação», «a violência», deixando de lado o sujeito concreto, real, que continua ainda hoje a bater às nossas portas.”
Desnaturalizar a miséria
Francisco recordou que quando esteve na FAO, por ocasião da II Conferência Internacional sobre a Nutrição, disse que uma das graves incoerências é o fato de haver comida suficiente para todos mas que nem todos podem comer.
O Papa destacou que a falta de comida não é uma coisa natural, não é um dado óbvio nem evidente.
“O fato de hoje, em pleno século XXI, muitas pessoas sofrerem deste flagelo deve-se a uma egoísta e má distribuição dos recursos, a uma «mercantilização» dos alimentos. A terra, maltratada e abusada, continua em muitas partes do mundo a dar-nos os seus frutos, continua a brindar-nos com o melhor de si mesma; os rostos famintos lembram-nos que desvirtuamos os fins da terra. Um dom, que tem finalidade universal, tornamo-lo um privilégio de poucos. Fizemos dos frutos da terra – dom para a humanidade – mercadoria de alguns, gerando assim exclusão.”
Desburocratizar a fome
Francisco chamou atenção para as questões burocráticas e destacou a dificuldade da distribuição de alimentos nas zonas de guerra.
“Encontramo-nos assim perante um fenómeno estranho e paradoxal: enquanto as ajudas e os planos de desenvolvimento se veem obstaculizados por intrincadas e incompreensíveis decisões políticas, por tendenciosas visões ideológicas ou por insuperáveis barreiras alfandegárias, as armas não; não importa a sua origem, circulam com uma liberdade jactanciosa e quase absoluta em muitas partes do mundo. E assim nutrem-se as guerras, não as pessoas.”
O Papa disse que é urgente desburocratizar tudo que impede que os planos de ajuda humanitária alcancem os seus objetivos e destacou então o papel do Programa Mundial Alimentar.
“Por esta razão, será muito importante que a vontade política de todos os países membros consinta e incremente decididamente a vontade efetiva de cooperar com o Programa Alimentar Mundial, para que este possa não só responder às urgências, mas também realizar projetos sólidos e consistentes e promover programas de desenvolvimento a longo prazo, segundo as solicitações de cada um dos governos e de acordo com as necessidades dos povos.”
No final do discurso o Papa disse que numa palavra, o PAM é um válido exemplo de como se pode trabalhar em todo o mundo para erradicar a fome através duma melhor atribuição dos recursos humanos e materiais, fortalecendo a comunidade local e os encorajou a prosseguir.
“Não vos deixeis vencer pelo cansaço (que é tanto), nem permitais que as dificuldades vos façam desistir. Acreditai naquilo que fazeis e continuai a fazê-lo com entusiasmo, que é o modo como pode germinar com força a semente da generosidade. Permiti-vos o luxo de sonhar. Precisamos de sonhadores que façam avançar estes projetos.”